Uso de materiais inflamáveis e explosivos. Emprego de armamento pesado. Ataque coordenado a equipamentos públicos, incluindo viaturas e bases policiais. Fechamento de ruas e avenidas com barricadas, muitas vezes incendiárias. Uso de reféns como escudos humanos. Todas essas características dizem respeito a uma modalidade de ação de criminosos chamada “domínio de cidades”.
Sobre tema tão específico e complexo, a Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (EJEF), do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), por meio do Núcleo Regional de Alfenas, realizou nesta segunda-feira, 25 de setembro, no auditório Edson Antônio Velano, da UNIFENAS, o Seminário “Medidas Cautelares e Prova no Cenário do Domínio de Cidades”, atividade integrante de um curso intensivo que ocorrerá no mesmo local até 29 de setembro.
A ação educacional sob o comando da Juíza Aila Figueiredo, Titular da 2ª Vara Criminal e de Execuções Penais e Coordenadora do Núcleo Regional da EJEF em Alfenas, é realizada com o apoio do Município de Alfenas, da Polícia Federal e da Polícia Militar de Minas Gerais. É a primeira vez que uma formação pedagógica dessa natureza é realizada pela Escola Judicial.
Seminário
A abertura do Seminário foi conduzida pelo Desembargador Renato Dresch, Segundo Vice-Presidente do TJMG e Superintendente da EJEF. Ele ressaltou a importância da união de esforços em prol da segurança pública e em defesa da vida. “É de valor inestimável a reunião harmoniosa de forças e atores estatais para a promoção da segurança pública e bem-estar social.”
O magistrado destacou ainda que o desenvolvimento da ação educacional visa qualificar os agentes das esferas municipal, estadual e federal dos vários Poderes a agir de forma estratégica e conjunta. “Se a gente não fizer esse trabalho em conjunto, vamos trabalhar como ilhas, e como ilhas nós não temos coordenação. Com essa ação educacional realizada pelo Núcleo de Alfenas, envolvendo todo o Sul de Minas e até autoridades de outros estados, se um dia tiver uma ação criminosa organizada, todos os agentes do Poder Público saberão qual protocolo precisa ser obedecido, na necessidade que se cria uma nova ordem de comando para essa atuação conjunta. Isso facilitará muito a reação do Estado”, concluiu.
Painéis
O seminário abordou o tema em três painéis. O primeiro conceitou o “domínio de cidades”, com exposição de Ricardo Matias Rodrigues, Agente de Polícia Federal. No segundo, a discussão jogou luz sobre a “Estrutura do Plano de Defesa”, considerando multiplicidade de etapas e de envolvidos, sob a docência de Samir de Oliveira Rodrigues, Analista de Inteligência Policial Militar do Mato Grosso do Sul (PMMS). No terceiro painel, o público acompanhou, com Lucélio Ferreira Martins Farias, Tenente Coronel Sub-comandante do BOPE-MT, o caso da “Operação Canguçu”. Deflagrada em abril deste ano, a força-tarefa com mais de 300 policiais de cinco estados durou 38 dias fazendo buscas pelos criminosos que atacaram a cidade de Confresa (MT) e fugiram para o Estado do Tocantins.
O Comandante da 18ª Região da PMMG, Coronel Jardel Trajano, atentou para a relevância da participação do corpo de agentes da Polícia Militar da região. “É muito importante que a Polícia Militar participe desse tipo de evento para que ela possa [se] atualizar e, através das informações, estabelecer novas estratégias de prevenção para que o fato não aconteça. E eu fico muito agradecido com a realização desse evento, principalmente, sabendo que nós estamos em condições de atuar de forma segura e tranquila, sempre preservando a vida dentro dos preceitos de direitos humanos”.
Formação intensiva
A Juíza Aila Figueiredo explicou que o curso programado para os dias 26, 27, 28 e 29 de setembro vai abordar, de forma muito especial, as questões relativas o tema. “São formadores do curso alguns dos maiores estudiosos do tema no país, que já estiveram presentes na apuração de vários episódios de domínio de cidades. Por meio das exposições dialogadas, dos estudos de caso e da montagem de um plano de defesa com exploração de rua pelas equipes de alunos, vislumbramos as possibilidades de lidar com este tipo de criminalidade muito desafiador, planejando ações e estudando as medidas cautelares aplicáveis ao caso e as provas possíveis neste cenário.”
A ação educacional conta com os seguintes formadores: Adilson Welington Silva, da PMMG; Alexander da Silva Rosa, Perito Criminal Federal; Bruno Ottaviani, Perito Criminal Federal; Diego Mahatma de Moraes, Capitão da Polícia Militar de Alagoas (PMAL); Hélio de Carvalho Freitas Filho, Agente de Polícia Federal; Rodrigo Lima Ferreira, Major da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG); Ricardo Matias Rodrigues, Agente de Polícia Federal, e Samir de Oliveira Rodrigues, Analista de Inteligência Policial da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul (PMMS).
Aila Figueiredo ressaltou que, pelo fato de o “domínio de cidades” ser uma tendência de criminalidade organizada que reúne elementos desafiadores para o Estado enfrentar, “é uma situação que exige conhecimento e preparo para combate, e é o que se procura desenvolver com o curso. Para combater efetivamente a hibridização e a convergência criminal, é necessário um entendimento mais profundo desses fenômenos e uma abordagem multifacetada que inclua a aplicação da lei, a inteligência e a prevenção do crime. Além disso, é necessário um esforço coordenado entre diferentes agências de aplicação da lei e entre diferentes países, pois a hibridização e a convergência criminal muitas vezes envolvem atividades criminosas que atravessam fronteiras nacionais”.
Estes fenômenos são particularmente preocupantes, porque desafiam as abordagens tradicionais de segurança e justiça. As estratégias de aplicação da lei que foram eficazes contra formas individuais de crime podem não ser adequadas para combater a hibridização e a convergência criminal. Além disso, a convergência criminal pode levar a uma escalada na violência e aumentar a gravidade dos crimes cometidos, pois os grupos criminosos se unem para realizar atividades mais amplas e destrutivas.
Domínio de cidades x novo cangaço
O nome “domínio de cidades” é autoexplicativo, porque descreve o contexto em que quadrilhas atacam uma localidade como um todo, e não estabelecimentos ou instituições de forma particular. Nesse processo, utilizam armamento pesado e de violência ostensiva, o que leva a população e as autoridades a experimentar uma atmosfera bélica durante o ataque. Segundo Aila Figueiredo, essas condutas são conhecidas como um desdobramento do cangaço ― e até já recebeu a denominação de “novo cangaço”. A magistrada, porém, faz a seguinte distinção: “O Cangaço Novo é uma espécie de roubo caipira realizado por um bando de cinco a dez pessoas. O domínio de cidades desenvolve-se com muito maior número de indivíduos infratores, com armas de maior calibre e poder de destruição, com preparação mais elaborada, meticulosa e mais cara, com grandes veículos para transporte de valores (quando visa ao roubo), com tentativa de neutralização de forças policiais através de ataque armado, com montagem de barreiras físicas em vias urbanas, com aliança instável entre componentes de um grupo e freelancers, dentre outros”.
O domínio de cidades pode visar a expropriação de bens de alto valor econômico, ataques a autoridades, resgate de prisioneiros e outros interesses. As consequências de uma empreitada criminosa desse tipo são incalculáveis e potencialmente abrangentes: danos ao patrimônio público e privado; restrição de funcionamento de agências bancárias e do comércio; interrupção de fornecimento de água e energia elétrica; e, no pior dos casos, perda de vidas.
Hibridação e convergência criminal
Sobre a hibridação na prática do domínio de cidades, o formador Lucélio Ferreira Martins Faria França, Tenente-Coronel e Sub-comandante do BOPE do Mato Grosso (MT), explica: “A hibridização criminal é um fenômeno que se refere à fusão de diferentes formas de atividades criminosas. Isso significa que os criminosos não estão mais limitados a um único tipo de atividade ilícita, mas estão combinando diferentes formas de crime para atingir seus objetivos. Por exemplo, um grupo criminoso pode se envolver em tráfico de drogas, contrabando, roubos a bancos e roubo de identidade digital ao mesmo tempo. Esta fusão de atividades criminosas permite que os criminosos se adaptem rapidamente a novas oportunidades e desafios, tornando-os mais difíceis de combater”.
O docente esclarece também que, além da hibridação, os criminosos praticam outra estratégia de reforço: a convergência criminal, a qual ocorre quando “diferentes grupos criminosos que, normalmente operam independentemente uns dos outros, se unem para realizar atividades ilícitas com um objetivo comum. Por exemplo, um grupo de traficantes de drogas pode se unir a um grupo de assaltantes de banco para realizar um ataque coordenado de domínio de cidades. A convergência criminal pode aumentar a eficácia das atividades criminosas e apresentar desafios significativos para as forças de segurança”, alertou.
Casos no Sul de Minas
A formação realizada pela EJEF e pelas Polícias Militar e Federal é bastante estratégica ao Sul de Minas. Na região houve várias ocorrências dessa modalidade de ação nos últimos anos. O caso mais conhecido e próximo a Alfenas ocorreu em Itajubá, em meados de 2022.
Houve preparação para outro em Varginha, em outubro de 2021, mas o plano foi descoberto, e os infratores acabaram mortos em confronto com policiais rodoviários e militares. A operação resultou na morte de 26 criminosos e apreensão de armas e bombas. À época dos fatos, o Inspetor Aristides Junior, Chefe da Comunicação Social da Polícia Rodoviária Federal em Minas, informou que as forças policiais investigavam o grupo há meses.
Em Passos, em 2018, também ocorreu ação criminosa dessa natureza.
Treinamento prático
A magistrada Aila Figueiredo ressaltou ainda que, ao final do curso, haverá uma simulação de um domínio de cidades em Alfenas, nas áreas de prováveis ataques, para melhor desenvolvimento e treinamento do plano. “Desde o início do curso já tivemos várias ideias sobre ações de defesa que poderão ser exitosas no nosso contexto”, explicou ela.
Tipificação penal
Alexandre Silveira, Delegado Chefe da Delegacia da Polícia Federal em Varginha, responsável pela circunscrição de 137 municípios no Sul de Minas, pontuou a importância da difusão da doutrina e da busca por uma adequação legal. “Esse evento tem como objetivo difundir a doutrina que a Polícia federal tem a respeito da investigação e combate a esse tipo de crime. É também importante trazer essa pauta aos membros do Judiciário, do Ministério Público para que nos auxiliem e nos apoiem nas nossas ferramentas investigativas, que a gente consiga fazer uma boa prevenção e também a repressão devida desse tipo de criminalidade. Vai ser tocado aqui também na necessidade da mudança da legislação. Apenas artigo 157, que trata do roubo, ele não é suficiente para cobrir este tipo de criminalidade”, concluiu.
O artigo 157 assim tipifica o crime de roubo e define a pena respectiva: “ Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa”.
Em agosto de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 5.365/2020, que visa tipificar o crime domínio das cidades e as punições para ele, além de introduzir o crime de intimidação violenta. As penas para o domínio de cidade variam de 15 a 40 anos de reclusão, enquanto a intimidação violenta tem penas de 6 a 12 anos, com possíveis aumentos em caso de lesão ou morte. Atos preparatórios também serão punidos de forma significativa. O projeto aguarda análise do Senado Federal.
Material publicitário e didático
Como resultado da ação pedagógica, será produzida mídia publicitária institucional das forças de segurança sobre o curso e o plano, além de material para dar destaque à importância do planejamento para a segurança pública.