“Eu fico com a pureza
Da resposta das crianças
É a vida, é bonita
E é bonita”
A abertura do Seminário “Temas Sensíveis Afetos à Infância e Juventude: Entrega Legal, Família Acolhedora, Apadrinhamento e Adoção Tardia” realizado em Muriaé no último dia 7, foi marcada por uma apresentação cultural de dança protagonizada pelas crianças e adolescentes do serviço de convivência do CRAS do bairro Santa Terezinha. A música escolhida, “O que é, o que é”, do cantor e compositor Gonzaguinha, aborda a beleza e as adversidades da vida, assim como os temas das palestras e reflexões compartilhadas ao longo do dia no auditório da Faminas.
O seminário contou com a participação de um público diversificado composto por magistrados, servidores, colaboradores terceirizados, defensores públicos, promotores de justiça, servidores dos Sistemas de Justiça e de Garantia de Direitos, especialmente profissionais dos equipamentos socioassistenciais da Rede de Proteção e Atendimento à Criança e ao Adolescente (CRAS e CREAS), líderes comunitários, conselho tutelar, conselhos de direitos da Criança e do Adolescente, conselhos de Assistência Social, entidades da Sociedade Civil organizada, profissionais da rede de saúde, famílias acolhedoras atuantes na região, famílias cadastradas no sistema para adoção, integrantes do grupo de pós adoção, e demais público externo. A ação educacional promovida pela EJEF foi transmitida simultaneamente para comarcas que não fazem parte do Núcleo Regional da Escola em Muriaé.
Dentre os docentes atuantes, destacam-se os juízes de Direito do TJMG, José Roberto Poiani, e Juliano Carneiro Veiga; a psicóloga Anapaula de Andrade Rinaldi Romão; e os assistentes sociais Tallys Geraldo Andrade Bastos, Joseane Nadir da Mata Paiva, Roselene Thomaz Peixoto e Priscila Aparecida Ramos (Programa Família Acolhedora).
Compartilhamento de vivências
O primeiro painel intitulado Família Acolhedora foi elucidado pelo Juiz da Vara da Infância e da Juventude de Uberlândia, José Roberto Poiani, que destacou a relevância da convivência familiar. “Convivência familiar é importante, é um direito constitucionalmente garantido e está na mesma linha do direito à vida. Convivência familiar precisa de ter prioridade absoluta – não tem escapatória. E nós temos que trabalhar em rede, eu não posso pensar numa criança só na assistência social, só na saúde, só na educação, só na criança, eu tenho que pensar na família dela. Articulação, programas, serviços, apoio às famílias, pois às vezes elas precisam de muito apoio”, pontuou o juiz.
Poiani relembrou sua infância, e destacou que conseguiu enfrentar as adversidades apresentadas devido ao acolhimento vivido em seu ambiente familiar. “Vim de família pobre, zona rural, morei na roça até 19 anos de idade, estudei em escola pública à noite, e faz 20 anos que eu estou magistrado porque eu tive uma família pobre e amorosa que me acolheu, que cuidou de mim”, refletiu.
O Juiz de Direito da Vara da Infância, Juventude e Execução Penal da comarca de Muriaé, Juliano Carneiro Veiga, relatou “nós tivemos várias experiências na Vara da Infância, de crianças que chegam não tendo outra referência familiar senão aquela do contexto em que sofreram violência, abuso, e não raras vezes, elas querem voltar para aquele ambiente porque não têm outra referência de afeto, de cuidado. Então, oportunizar a essas crianças e adolescentes essa referência familiar, tanto possibilita que tenham novos parâmetros, novos referenciais, como também possibilitará que no futuro, tenham este olhar para a família que vão constituir. Quando a gente não tem parâmetro, aceita situações de violência e de abuso porque não tem um outro olhar, e maturar isso é essencial”.
A família acolhedora na prática
O Serviço de Família Acolhedora (SFA) é uma forma de amparo que visa proporcionar uma guarda abrangente a crianças e jovens que precisam ser temporariamente separados de suas famílias de origem ou extensa devido a medidas de segurança. A provisão de acolhimento deve ser o último recurso para garantir os direitos das crianças, depois que todas as outras formas de apoio à família de origem foram esgotadas pela rede de serviços.
De acordo com o artigo 101, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o acolhimento, seja em uma estrutura institucional, seja em um ambiente familiar, é sempre uma medida extraordinária e temporária. O artigo 19, § 2º, também ressalta que a permanência da criança ou do adolescente no programa de acolhimento não deve exceder 18 meses, a menos que haja uma justificação comprovada.
Denise de Matos de Castro Dias foi uma das convidadas para falar sobre o tema da família. Moradora de Juiz de Fora, a professora exerce a função de família acolhedora há cerca de 10 anos e está hoje em seu 13º acolhimento, recebendo em seu lar, no momento, três crianças (uma bebê e duas irmãs). Denise contou que precisou parar de dar aulas para cuidar de seu pai de 90 anos, que já estava com a saúde comprometida. Disse que ficou sabendo do serviço de acolhimento familiar e pensou que seria uma boa oportunidade para trazer as crianças para perto dela novamente. Já se passaram oito anos deste primeiro acolhimento, e desde então, ela não parou mais. “Acredito que foi um processo que valeu a pena, porque a nossa casa ganhou vida, outra atmosfera; até então estávamos todos só pensando em doença, remédios, e quando as crianças chegaram, tudo mudou. O meu pai, que não tinha mais expectativa de vida, viveu mais cinco anos, e eu digo que foi graças àquelas duas crianças, porque elas trouxeram muita alegria para nossa vida”, relatou.
Para Denise, ser família acolhedora é mais do que um ato de solidariedade, é uma responsabilidade social. “Acredito que se a gente tem um olhar sensível à primeira infância, a gente está dando esperança ao nosso futuro. O problema não é de uma determinada família, é o nosso problema; são nossas crianças. Elas vão crescer e estarão na nossa rua, no nosso bairro, na nossa cidade. Então é nosso dever ter um olhar significativo para elas e acolhê-las em suas demandas. Sei que nem todos têm a vocação, o dom, acredito que isso seja um chamado, mas todos nós temos essa responsabilidade de olharmos para a criança de uma forma diferente e fazer valer os seus direitos enquanto cidadã. E se você não tem esse chamado pra si, pode conhecer uma pessoa e incentivá-la nesse sentido. Você pode ser uma ponte, uma rede de apoio a essa pessoa que quer ser uma família acolhedora, mas tem medo”, ponderou.
Quando questionada acerca do apego e desapego, sentimentos presentes neste processo de acolhimento familiar, Denise desabafou: “A gente sofre, chora, sabe que vai embora, mas não deixa de amar. E eu sempre falo, não deixe que o medo de sofrer seja maior do que o amor que você tem pra dar”.
A professora relatou que seu olhar para o acolhimento foi ressignificado novamente em 2021, quando perdeu seu único filho. “Se eu não estivesse com uma criança dentro da minha casa, eu não voltaria pra casa. Foi uma criança que chegou pra gente com seis anos, e na primeira semana (todas as crianças são assim), elas chegam assustadas, com medo, por mais que seja feito um trabalho, é um ambiente estranho para ela, é uma nova família; e a primeira noite dessa criança, ela chorou muito, e perguntava por que, por que eu tenho que estar aqui, por que não foi possível eu ser cuidado pela minha avó, pela minha tia? E aí na primeira noite com ela, a gente dormiu todo mundo junto na sala, e eu a peguei e falei: ‘agora nós vamos cuidar de você até que tudo seja resolvido. No momento eu não sei o porquê, mas um dia a gente vai entender e nós vamos caminhando juntos, conversando e te ajudando’. E no dia em que meu filho morreu, quando eu voltei para casa, essa criança falou assim: ‘tia, vem cá, agora sou eu que vou cuidar de você, pode chorar’. E eu pude deitar no colo dela, e ela me fez carinho aquela tarde inteira. Então naquele momento, eu entendi que na vida a gente tem perdas e ganhos, e a gente precisa conviver e saber viver com isso. Para uma criança talvez você seja o único caminho, a única ponte que ela tem para atravessar esse luto que ela está vivendo”.
Ao concluir a questão do apego e do desapego, Denise refletiu: “sofrer, todos nós vamos, mas por medo de sofrer, você vai deixar de dar amor? Se Deus me perguntasse: vou te dar seu filho, mas eu vou tomar quando ele tiver com 24 anos, você quer ou não? Os 24 anos que eu passei com ele foram muito bons, e eu passaria novamente. Então, essa criança que você vai acolher, amar, ajudar, quando ela for embora, você vai ter uma saudade gostosa, um sentimento de dever cumprido. Então, sobre apego e desapego, eu deixo essa palavra para vocês: ‘Não deixe que o medo seja maior do que o amor, ame! E o amor sempre volta para você – o amor sempre volta para a gente. É um processo de luto cada acolhimento, mas é um processo que a gente tem que passar porque eles precisam levantar voo e ir embora”.
O Programa Entrega Legal
A psicóloga Anapaula de Andrade Rinaldi Romão falou sobre o Entrega Legal e os desafios e responsabilidades inerentes a todos os envolvidos neste processo. Trata-se de um programa implementado pelo TJMG em 2018, por meio da Coordenadoria da Infância e da Juventude (COINJ), visando a atender as determinações da Lei 13.509/17, que trouxe importantes alterações ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) acerca do direito das gestantes e mães de recém-nascidos a realizar, voluntariamente, a entrega do filho para adoção, após o nascimento. A Entrega Legal visa evitar práticas como abandono de recém-nascidos, maus-tratos e adoção ilegal.
Anapaula trouxe o seguinte questionamento: “Quem são as mulheres que entregam os filhos para adoção? Essa pergunta vem no plural porque essas mulheres são múltiplas, cada uma tem a sua história”. E ressaltou que não cabe a ela, como profissional, e a ninguém convencê-la de que não deveria entregar a criança para a adoção – a entrega é voluntária e a decisão da mulher deve ser respeitada” – refletiu.
A psicóloga ilustrou a situação ao contar que houve uma mulher que desejava entregar seu filho para a adoção, mas uma enfermeira do hospital insistiu para que ela não o fizesse, pois iria se arrepender posteriormente. Passados alguns meses, houve relatos de que a criança estava sofrendo maus-tratos, o que culminou em um afastamento entre essa mãe e seu filho. E destacou “o útero não é suficiente para poder fazer de uma mulher mãe, e isso nos coloca diante da diferença entre maternidade e maternagem. Nesse sentido, a maternidade pode ser realizada por qualquer mulher que não tenha impedimento de ordem orgânica, diferente da maternagem, que se refere a um laço construído no campo relacional entre mãe e filho. Algumas pessoas dizem que a gente tem um instinto materno, mas instinto existe no campo do reino animal, eles parem suas crias, a gente não vê animais cometendo infanticídio”.
Anapaula ressaltou a importância da escuta ativa, do acolhimento desta mulher e de um não julgamento moral a respeito de sua decisão, atitudes que evitam situações de abandono de crianças em terrenos baldios, latas de lixo, porta de hospitais e igrejas. “Nós profissionais devemos evitar constrangimentos e nos colocar disponíveis para escutar e respeitar a decisão destas mulheres e os seus limites; e respeitar, sobretudo, o seu direito ao sigilo”, afirmou.
Na sequência, as exposições concentraram-se nos temas Adoção Tardia e Apadrinhamento Afetivo, e proporcionaram uma imersão nas práticas e desafios envolvidos nesses processos. Relatos emocionantes, troca de experiências, conscientização e aprendizado foram marcas deixadas por este seminário; que ao explorar os obstáculos e as recompensas desses caminhos singulares, evidenciou a força transformadora de laços não consanguíneos – mas igualmente valiosos.