Introdução Histórica

Luís Carlos B. Gambogi
Deputado da Assembleia Constitucional mineira e
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

“A Constituição certamente não é perfeita; ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais.”

Com essas palavras, dentre outras de igual dignidade, o Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Deputado Ulysses Guimarães, promulgava a Constituição da República. Estávamos no dia 5 de outubro de 1988. Menos de um ano depois, o Estado de Minas Gerais, aos 21 dias do mês de setembro de 1989, apresentava-se ao Brasil como a primeira unidade da Federação a promulgar sua Constituição.

Em seus primeiros momentos, tínhamos todos nós, os constituintes, o sentimento de que não seríamos capazes de elaborá-la. Eram tão diferentes as linhas ideológicas, tão diversos os programas partidários, tão díspares os estilos e as convicções, de ordem religiosa, filosófica e política, que tudo indicava que nos perderíamos nos embates e nas discussões entre parlamentares e membros da sociedade.

Pouco a pouco, no entanto, o que parecia tender a um cenário belicoso transformava-se num palco de negociações, de composições, de criação. Temas espinhosos que envolviam inúmeros interesses e que eram, ao mesmo tempo, profundos e conflituosos, como segurança pública, saúde, educação, meio ambiente, planejamento, participação e controle popular, administração pública, ciência e tecnologia, direitos das mulheres, das crianças e dos adolescentes, dos portadores de deficiência, turismo, regionalização, política prisional e fazendária, religião e política rural, dentre outros, eram enfrentados, debatidos, negociados e consensualizados. Vez por outra, naturalmente, determinados temas eram deliberados por meio do voto, depois de construída uma convergência mínima.

Até aqui, minha narrativa está circunscrita ao Parlamento. Porém, o que de mais bonito víamos e que chegava a ser emocionante estava na participação popular. Sem exagero, cada página escrita no corpo do texto constitucional fora antes objeto de análise da sociedade organizada. O que nascia não era fruto de uma só inteligência, ao contrário, advinha das ruas, das praças, dos servidores públicos e dos operários, dos estudantes e dos aposentados, dos pobres e dos empresários, dos posseiros, dos fazendeiros e dos despidos de qualquer propriedade.

Aquele momento da história era propício, estimulante, havia esperança nos olhos das pessoas. O Brasil se democratizava, era promulgada a suprema lei do Estado, o estatuto do homem livre, estava decretado o fim da tirania e deflagrado o processo de construção da democracia.

Sob o ponto de vista metodológico, não teríamos, como não tiveram os Constituintes da Assembleia Nacional, um anteprojeto previamente elaborado por grandes juristas, o qual apenas seria submetido aos senhores deputados para que, formalmente, o votassem e o promulgassem. Não! O Brasil sonhava além disso, queria ousar, encontrava-se fortalecido pela coragem, a principal das virtudes, nas palavras de Dr. Ulysses Guimarães. A coragem é virtude que mantém a verticalidade do homem diante do medo, a virtude que sustém as demais virtudes diante do risco. Sem ela, o sentido do dever, da honra e da Pátria, indispensável ao homem de Estado, seja ele Magistrado, Presidente ou Parlamentar, põe-se de joelhos diante do perigo.

Portanto, assim como fizeram os membros da Assembleia Nacional, pela primeira vez, o Brasil e Minas Gerais, audaciosamente, inovariam no que tange à arquitetura tradicional de uma Constituinte. Partiríamos da vontade popular, não de um anteprojeto, o qual, por melhor que seja, afasta o povo e enfraquece as instituições.

Assim foi feito! O que, posteriormente, viria a constituir Títulos, Capítulos e Seções, naquele primeiro momento, assumiria a forma de comissões responsáveis por trabalhar temas específicos, sempre sob a presidência de um parlamentar. Eu, por exemplo, fora designado para presidir a Comissão de Ciência e Tecnologia. Naturalmente, tanto o presidente quanto os membros de comissões temáticas eram livres para participar dos debates que ocorriam em outras comissões, patrocinando, inclusive, emendas de autoria do próprio parlamentar ou emendas populares. Lembro-me de que, mesmo presidindo a Comissão de Ciência e Tecnologia, fui o autor, dentre outras, de duas elogiadas iniciativas que vieram a se transformar no art. 3º (“O território do Estado somente será incorporado, dividido ou desmembrado com a aprovação da Assembleia Legislativa” 1 ) e no art. 13, § 2º (“O agente público motivará o ato administrativo que praticar, explicitando-lhe o fundamento legal, fático e a finalidade” 2).

Para que eu não falte à justiça, compreendo que se faz indispensável uma homenagem, ainda que singela, aos professores, que, por todo o tempo, dia após dia, assessoraram a Assembleia Constitucional. Se me esqueço de alguém, que me perdoe, mas vêm-me à mente as figuras de Paulo Neves de Carvalho, Maria Coeli Simões Pires, Raul Machado Horta, Menelick de Carvalho, Mônica Sette Lopes e Antônio Augusto Junho Anastasia, o menino gênio que viria a governar Minas Gerais e que hoje nos representa no Senado Federal.

Para se ter uma ideia, o resultado e a dimensão do trabalho empreendido encontram-se no acervo histórico mantido pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais: 2.800 documentos passaram pela Assembleia Constitucional, presidida pelo Deputado Camilo Machado, documentos estes que compreendiam cerca de 10 mil sugestões à Constituinte mineira.

Em 9/3/1989, o relator da Comissão Constitucional, Deputado Bonifácio Mourão, apresentou o anteprojeto, que foi então distribuído em Plenário para discussão, apresentação de emendas e votação, em 1º e 2º turnos, sendo que, em 21/9/1989, a nova Constituição do Estado veio a ser promulgada em Reunião Solene.

Na Reunião Solene de Promulgação da Constituição mineira, consignou o Deputado Bonifácio Mourão: “Há quase um ano, cidadãos saídos do seio do povo, nós, os constituintes, olhávamos com respeito, quase temor, para o imenso desafio: à nossa frente, a lei por criar; sobre nós, o peso da tradição, de lutas e de glórias, um passado de onde nos vigiava o olhar severo de um sem-número de pessoas ilustres que constituíram a História desta Terra.”

 


 

1. À época, havia um movimento crescente que pugnava pelo desmembramento do Triângulo Mineiro, que arrefeceu sua tração com a aprovação dessa emenda.
2. O Estado de Minas Gerais foi pioneiro! Antes mesmo da própria Constituição da República, passou a exigir a motivação como critério de validade do ato administrativo.